Usar a dor e drama das pessoas mais humildes para ganhar dinheiro com contratos suspeitos e superfaturados. São essas as acusações contra a empresa cuiabana
Medtrauma mostradas no Fantástico deste domingo (18).
A empresa foi alvo da
Operação Higeia, deflagrada no dia 2 de fevereiro pela Polícia Federal. Na ocasião, a investigação apura irregularidades nos contratos da empresa com os Governos do Acre, Rondônia e Mato Grosso.
As investigações da Controladoria Geral da União (CGU) apontaram que os Governos de Mato Grosso e Roraima contrataram a Medtrauma por meio de uma ata de registro de preços do Governo do Acre. A ata é um sistema de contratação permitido em lei, que pode acelerar a contratação de algum tipo de serviço.
A reportagem mostrou casos de pacientes ortopédicos que passavam por procedimentos desnecessários. Alguns com fornecimento de próteses acima do preço e outras sem a certificação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
"Não é medicina. É transformar a assistência médica num comércio", resumiu Walter Cintra Ferreira, professor em Gestão em Saúde/FGV.
Em um dos casos, um caminhoneiro de Cuiabá precisava de uma prótese no fêmur. O fornecimento da prótese importada e a cirurgia foram conseguidas após o caminhoneiro obter decisão judicial após ação impetrada pela Defensoria Pública.
A cirurgia ocorreu rapidamente. A surpresa veio quando ele já se recuperava e recebeu outro contato, da Defensoria Pública, afirmando que a prótese importada havia chegado e a cirurgia, enfim, seria marcada. "Falaram que já estava liberada a prótese para operar. Eu disse que já operei e eles falaram, mas como o senhor operou se a prótese está no mesmo local? Aí que eu desconfiei", relatou.
Ao questionar o hospital sobre a prótese recebida, o caminhoneiro recebeu uma nota da empresa Protesis Distribuidora de Implantes Cirúrgicos Ltda, uma das empresas do grupo que faz parte a Medtrauma. "A nota não tinha marca, modelo, validade ou registro da prótese na Anvisa. Informações que são obrigatórias por lei", diz a reportagem.
Os materiais para esta cirurgia custaram mais de R$ 17 mil.
Em Roraima, Maria dos Santos precisou de uma cirurgia para colocar quatro parafusos na coluna. Todavia, no prontuário, é apontado que foram colocados seis materiais.
Além disso, assusta o preço cobrado. No 'mercado comum' ortopédico, cada parafuso tem o custo de R$ 500, o que daria R$ 2 mil. Já para a Medtrauma, além do acréscimo de dois parafusos, cada um deles custou mais de R$ 6,3 mil, fazendo o procedimento custar mais de R$ 37 mil. "Fui usada para arrecadarem mais dinheiro", lamentou Maria.
Também em Roraima, um paciente de nome Sebastião, sofreu uma lesão grave na perna direita após um acidente de moto, necessitando de cirurgia. Porém, os médicos também operaram sua perna esquerda, que não tinha qualquer lesão.
"Fiquei com as duas pernas com ferro lá, muitas horas", contou. Pouco depois, a equipe médica realizou outro procedimento, para retirar o colocado na perna que estava sem ferimentos. "Foram retirando os ferros tudo e colocando dentro de um saco de lixo", falou.
As cirurgias de Sebastião custariam R$ 1640,20 na tabela SUS. A Medtrauma recebeu do Governo de Roraima quase R$ 5 mil, três vezes mais que a tabela.
MATO GROSSO
Em Mato Grosso, a Medtrauma tem contrato com Governo para realizar todos procedimentos clínicos e cirúrgicos na área ortopédica na Capital e interior. Porém, o contrato vai além, e permite a empresa fornecer órteses, próteses e materiais usados nas cirurgias e procedimentos ortopédicos.
"Não é razoável que a mesma empresa que indica a cirurgia é a mesma empresa vende o material e a mesma empresa que apresenta a conta dos serviços para a administração pública. Isso é claramente um conflito de interesses", seguiu Walter Cintra Ferreira.
Em Mato Grosso, a antiga fornecedora de materiais ortopédicos foi apenas comunicada do fim da relação com o Governo do Estado. "Já fornecemos há muitos anos e de repente recebemos comunicação que nosso contrato seria suspenso com alegação de que foi aderida ata com empresa médica", disse Frederico Aurélio Bispo, representante da Síntese Comercial Hospitalar.
A Medtrauma foi contratada pelo Estado por meio de uma ata de registro de preços da Secretaria de Saúde do Acre. Lá, também foram encontrados problemas, que acabaram sendo exportados para os demais estados.
"Uma ata de registro de preço não é ilegal. Agora, se essa ata ela, digamos assim, ela tem um vício, ela foi utilizada para superfaturar serviços e coisas desse tipo, ela acaba se disseminando para outros estados na medida que outros estados aderem a essa ata. Você no fundo, pode estar, e aí coloco ênfase, no pode, exportando um esquema ilegal de superfaturamento, eventualmente de corrupção para outros lugares", diz Vinícius Marques de Carvalho, Ministro da Controladoria Geral da União.
No Acre, os superfaturamento identificado pela CGU é de R$ 9 milhões. "Para um estado pequeno, é um valor muito expressivo", citou.
OUTRO LADO
A Medtrauma negou irregularidades nos contratos. "A empresa tem orgulho dos serviços que presta".
Sobre os valores cobrados acima do praticado no mercado, a defesa da empresa alega que os fornecedores estão distantes dos estados em que presta os serviços. "Há um custo logístico de levar equipamento de São Paulo para o Acre, onde só chega de avião ou de barco. Da mesma forma, Roraima, Mato Grosso".
A empresa também não vê problemas em ser responsável por indicar e realizar as cirurgias, além de fornecer as próteses e órteses. "O preço praticado é de mercado, ela consulta empresas e adquire aquele que é mais barato".
O advogado no entanto, evitou comentar as denúncias dos pacientes operados por médicos da Medtrauma. As pessoas não receberam documento algum da empresa sobre as informações de suas próteses.
O Governo do Acre disse que a licitação que gerou na contratação da Medtrauma seguiu a legislação. Além disso, disse que após os apontamentos da CGU intensificou a fiscalização e não encontrou nada que desabone a empresa
Já a Secretaria de Saúde de Roraima disse que a tabela do SUS não é base para aquisição de material e negou superfaturamento na compra de medicamentos.
Sobre a cobrança de seis parafusos na paciente Maria, admitiu erro administrativo. Em relação a cirurgia na perna não lesionada do paciente Sebastião, declarou que foi excesso de cuidados, ou seja, prevenção.
A Secretaria de Saúde de Mato Grosso disse que o pagamento de materiais utiliza valores de referência da tabela SUS. Para materiais fora da tabela, é praticado o menor valor de mercado. Sobre a rastreabilidade das próteses, disse que atende às exigências da Anvisa.
A empresa cuiabana de saúde pública alegou que o município não chegou a executar o contrato com a MedTrauma porque sofreu intervenção estadual. O gabinete de intervenção, por sua vez, afirmou que o contrato já estava firmado antes de assumir a saúde do município.